Como a elogiada ‘agricultura verde’ da Europa pode estar prejudicando o meio ambiente no Brasil

A União Europeia implementou muitas leis para tornar sua agricultura mais sustentável, mas acabou produzindo impactos indiretos no desmatamento e poluição ambiental na América Latina ao relegar ao continente as culturas menos sustentáveis, dizem pesquisadores.

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A lista de preocupações da Europa em relação à agricultura é longa, mas muitas vezes é limitada ao que acontece dentro de suas próprias fronteiras.

Abrange produtos orgânicos, práticas sustentáveis, conservação da diversidade biológica e cuidados com a terra, bem como controle dos produtos químicos utilizados nas culturas.

Mas enquanto a Europa luta para dar uma resposta política a seus cidadãos que exigem medidas mais vigorosas para combater a mudança climática, os cientistas advertem que sua política agrária é prejudicial aos ecossistemas da América Latina, ao continuar a depender de culturas menos ambientalmente corretas que vêm do continente latino-americano.

A Europa tenta dar a impressão de que sua agricultura é verde e sustentável, mas se levarmos em conta o conjunto do sistema, ou seja, a cadeia de produção, não é bem assim”, diz Laura Kehoe, pesquisadora da Universidade de Oxford, no Reino Unido.

Kehoe foi a responsável pela iniciativa que, há cerca de uma semana, fez com que 602 cientistas de diferentes organizações europeias assinassem uma carta pedindo à União Europeia para repensar seu acordo comercial com o Brasil.

Matérias-primas

Quando a cientista fala sobre cadeia produtiva, refere-se à origem dos produtos. “As pessoas esquecem aquilo que não veem. Agora mesmo, a Europa está importando uma grande quantidade de matéria-primas ligada ao desmatamento”, diz a cientista.

O desmatamento na Amazônia, por exemplo, aumentou 54% em janeiro de 2019, em comparação com o mesmo mês de 2018, segundo dados da ONG brasileira Imazon.

E uma das maiores causas dessa alta do desmatamento é o crescimento da produção de soja, principal alimento do gado europeu devido seu alto teor proteico. Segundo dados da Comissão Europeia, a UE importa cerca de 14 milhões de toneladas de soja por ano para fabricar ração animal.

Atualmente, quatro países sul-americanos – Brasil, Argentina, Paraguai e Bolívia – produzem metade da soja que é comercializada no mundo. Há 50 anos, porém, produziam apenas 3%. Esse aumento drástico fez com que, em muitos lugares, a vegetação nativa fosse suprimida para plantar soja.

“Somente em 2011, a União Europeia importou carne e ração para gado em um volume que equivale a mais de mil quilômetros quadrados de desmatamento no Brasil”, diz a carta assinada por Kehoe e seus colegas. Isso representa a perda de uma área semelhante a 300 campos de futebol por dia.

“A Europa fez grandes avanços. Mas, muitas vezes, esses avanços ocorreram à custa de outros países e outros povos”, acrescentou Kehoe.

“As reformas agrícolas na Europa levaram à inclusão gradual de mais critérios de impacto ambiental e proteção da biodiversidade. Porém, algumas decisões, como a destinação de uma porcentagem de terra arável a um uso mais ecológico, provocaram impactos globais”, opinou o pesquisador Mar Cabeza, da Universidade de Helsinque, na Finlândia.

Em outras palavras, as tentativas de melhorar os indicadores ambientais na Europa acabaram tendo consequências inesperadas na África, na América Latina ou no Sudeste Asiático, uma vez que empurraram para essas regiões as culturas de que a Europa continua precisando, mas não produz mais.

Sobre o terreno

Tiago Reis, pesquisador brasileiro da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, ressalta que “a importação de alimentos para produzir ração para animais na Europa também está provocando contaminação por agroquímicos e alimentando a especulação imobiliária, a violência e a expulsão de comunidades indígenas”.

Para Reis, os reguladores europeus “já não podem olhar para o outro lado”, citando organizações sem fins lucrativos que estão monitorando esse tipo de relação comercial.

‘Impacto devastador’

Tobias Kuemmerle, acadêmico da Humboldt-Universität de Berlim, na Alemanha, fez em 2018 uma pesquisa de campo no Chaco, área de mata nativa na fronteira da Argentina com Paraguai e Bolívia. E ali também os impactos são “devastadores”, diz ele.

“Estudamos qual é a mudança ocorrida na região e seu efeito nas emissões de CO2 e na diversidade”, diz o pesquisador. “E (o impacto) se deve sobretudo aos que são proprietários de terra mas moram longe dali ou a grandes companhias internacionais que compram a terra para desmatar. (…) Tudo está claramente ligado ao consumo de carne na Europa e à importação de soja. (…) A Europa protege muito sua agricultura, mas importa cada vez mais de regiões onde o impacto ambiental é muito grande.”

Isso porque, diz ele, o fenômeno do desmatamento nesses casos é a combinação de uma terra relativamente barata que pode ser rapidamente convertida em pastos ou campos agrícolas, com foco na exportação.

No entanto, Kuemmerle destaca que há efeitos positivos disso, a despeito dos impactos ambientais.

“A agricultura tem um papel importante na economia do Paraguai e da Argentina, e o desmatamento trouxe benefícios às pessoas da região”, opina.

Pressão

Para os pesquisadores, a União Europeia tem de aproveitar suas negociações com os países do Mercosul para exigir mais garantias.

“O Brasil, lar de uma das últimas grandes florestas do mundo, está em negociações com a UE. Instamos que a UE aproveite essa oportunidade crucial para garantir que o Brasil proteja os direitos humanos e o meio ambiente”, diz trecho da carta dos cientistas, publicado pela revista Science em abril, citando também que o bloco europeu importa itens como minério de ferro e carne bovina que não seriam extraídos em condições sócio e ambientalmente sustentáveis.

Para o professor Martin Wassen, da Universidade de Utrech (Holanda), a “UE está agora no momento de exigir normas rígidas para a produção desses itens agrícolas, incluindo normas ambientais e de segurança alimentar, como (as referentes ao) uso de pesticidas ou hormônios”.

E também, diz ele, de garantir que os produtos importados “tenham condições sociais e salariais justas para agricultores e empregados”.

FONTE:https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/

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